Foto: Nikos Douvlis Manipulação: Alexandre Lucio Fernandes |
O vento desorienta as ruelas, um surrupio esbaforido que acalenta as curvas solitárias entre prédios imersos na clausura. Olhos fugidios espreitam, pelas janelas, o dissabor de um dia se rompendo; mãos ansiosas se escoram por sacadas, sedentas por um desavisado aperto do mundo. O sol, escondendo-se, deixa escapulir seus últimos raios por entre as casas e as árvores, e a poeira esfacelando pelo ar deixa-se visível, criando uma atmosfera bucólica. Na principal avenida, veículos se digladiam, buzinas fervorosas, pés apressados em acelerar, que violam o soturno silêncio que se envolvia no ambiente. Poucos notam aquela graciosa pipa dançando no ar.
O véu sombrio do crepúsculo vai alaranjando as ruas que num instante, são tomadas por pessoas de olhares vagos e distantes. É a noite, próxima, convidando-se a entrar, libertando vagarosamente seu manto de escuridão. Neste momento, a mãe com o filho no colo corre ligeira atrás de ônibus lotado. E o senhor de bengala anda sobre as esburacadas calçadas, atento para não cair. O mundo em movimento não atrapalha o prazer daquele casal no sexto andar do prédio, que somado a carícias e beijos, faz um amor belo, puro e pulsante. O medo parece se dissipar pelas feições vazias dos transeuntes. E a pipa, a tremular, cambaleia seus dotes por um céu que vai enegrecendo segundo a segundo. Mas ninguém a vê.
Ouve-se o ranger da porta de metal do mercadinho do seu José, que se despede de um dia em que o trabalho foi seu melhor companheiro. Na outra esquina, o bar do Manoel abre as portas para clientes ávidos por uma sinuca e uma cervejinha gelada. O calor desanuvia ante as fagulhas finais de um longo dia, e o vento desabrocha, trazendo frescor a poucas flores que, vigorosamente, nasceram pelos becos. Até o sorriso da moça bonita da rua de trás causa sossego a olhares desejosos. O fim do expediente do açougue é alegria do cachorro que, incessantemente, e em vão, balança seu rabo para tentar ganhar um pedaço de carne do açougueiro. E a pipa, sem ninguém a notar, continuava sua rasante, em uma presença bela e fugaz.
O céu começa a dar lugares para estrelas cativantes e cheias de brilho. Televisões iluminam-se entre as salas das casas, ressoando o som do telejornal das sete frente a olhos vibrados. Na pracinha, alguns viram o rosto para o assovio do adolescente para a bonita mulher do médico da rua das laranjeiras, que caminhava para casa. E a pipa, ondeando sob as pessoas, passa despercebida, voando por entre os prédios, adentrando os becos em plena penumbra. Ela perambula, sorrateira pelo ar, elegantemente, de modo quase teatral. Até que inesperadamente solta-se, deixa-se levar pelo vento, completamente entregue. Em seu voo cego, engata em fios de eletricidade, próximo ao transformador do poste, causando um perigoso curto. O barulho das fagulhas atrai a vista de curiosos, que veem a pipa agonizando nos fios.
No beco, gritos são abafados por mãos grandes e suadas. A doce menina que há pouco brincava, era violentada, enquanto todos estavam atentos ao triste fim da sua pipa.
Aspas do Autor: Às vezes o cotidiano esconde muito mais terror do que aquilo que somos capazes de ver... Parece que somos atraídos demais por coisas irrelevantes, quando há coisas mais essenciais que merecem a nossa atenção. A violência sexual contra crianças, infelizmente, ainda é muito presente por essas ruas do Brasil, e pouco se faz. Muitos só conseguem enxergar a pipa enroscada no fio causando curto... Este texto é apenas um conto, mas tristemente inspirada pela cruel realidade...
5 comentários:
Teu conto invadiu-me corpo inteiro, como um grito. Mas, o mundo continua mudo aos gritos dos que pedem socorro. Os valores hoje são outros... infelizmente.
Muitos reclamaria das pipas desligando "as novelas televisivas" e, o caos da novela social que violenta as ruas passa, sim, desapercebido.
Abraço fraterno.
Alê, quanto tempo faz que eu não entro aqui.
Gostei muito do visual, ficou show!
Esse texto me tocou muito, principalmente pelo trecho "e a pipa, a tremular, cambaleia seus dotes por um céu que vai enegrecendo segundo a segundo. Mas ninguém a vê", pois é uma coisa realmente verdadeira, as pessoas não olham pro céu, eu fico indignada. Eu sempre caminho olhando pra cima, parece doidera, mas é delicioso. Eu noto tudo, todas as nuvens em formato de animais ou os pontinhos pretos inexplicáveis, hahaha.
Leveza de texto, lembrou-me muito minha infância! Beijo!
Oie, estava tão ausente de tudo, senti falta da sua escrita.
Estou voltando com o blog, aos poucos tudo está entrando no modo normal rs...
Mudei o link do blog!
Boa tarde Alê!
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Oieeeee
Demorei mas cheguei.
Seu conto muito bem escrito e com a leveza que só você sabe dar.
Infelizmente o tema carece de muita atenção. A violência sexual contra crianças é devastador, ficam feridas marcadas na alma.
Beijo meu Alê.
Saudade
Amodoro
♥
Forte e crítico. Gostei da analogia. Muitas vezes, as situações de abusos se passam despercebidas por aqueles que estão ao redor ou são menosprezadas.
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