Singular

27/01/2023

Foto: Dan Meyers

Existe algum segredo na cadência dos meus passos, do meu gingado tenro e resoluto; no meu olhar cristalino, sempre admirado, que transparece candura e algo de densa compreensão. Parece haver um diminuto fio invisível que me locomove e me impulsiona espontaneamente, esnobando a engenharia complexa na qual o mundo externo se desenha diante de mim. É uma presença quase inconsciente e intimamente discreta, pois me abrange e me abriga, e de algum modo, sutilmente, sinto-a.

É um empuxo que me põe a investigar e abraçar as nuances da vida, da natureza, das pessoas que me cercam, feito um processo de microscopia em que me atiça enxergar as substâncias belas – e invisíveis – ao meu olho nu. É um olhar de dentro, um olhar da alma, uma completa inteiração dos traços, das diferenças e características que tornam cada coisinha tão única. Eu capturo segundos e eternizo momentos, alimentando um relicário com ricas experiências, praticamente imperceptíveis para uns.

Eu não entendo muito bem como vou tateando pelos caminhos, tampouco compreendo esta força que me ampara e me põe diante de encontros especiais, como um novelo que se desdobra e vai se revelando – para mim –, ocasionando-me em tons de assombro. Sou refém de escolhas que ainda não captei bem e me custa conceber o propósito pelo qual me dispus ao encarnar nesta vida. Sinto-me um explorador, um viajante que se propôs a colher aprendizados, ingerindo desde o mais belo ao mais desprezível.

Eu persigo desejos e sonhos muito profundos, e não tenho mais muita convicção se um dia os realizarei. Mas são eles que me impõem a caminhar descalço para sentir a vibração do mundo, a apreciar o entardecer de um dia ensolarado, maravilhar-me com simplicidades, como um abraço acalentado ou com o sabor de um café feito com amor. Eu perscruto o amor, mas no fundo, ele que me espreita de longe, enfeitando e colorindo os meus caminhos, para que eu seja preenchido com um sentimento tão singular quanto inexplicável.


Aspas do Autor: A cada dia percebo mais a importância em viver, aproveitar a vida e todas as suas singulares e ricas experiências. Viver é sempre se surpreender.

Ainda é cedo

21/08/2022

Foto: Cristian Palmer


Ainda me falta o ar, essa miúda resistência frente ao empuxo que a vida tem desferido. Tenho sobrevivido sob os escombros de sonhos antigos, quase esquecidos por essa poeira que se acumulou nesses dias tão íngremes e densos. Respiro, ainda que com dificuldade, as nuances que construí; os apelos que já gritei; os abraços suprimidos e desejados. Ainda é cedo para desistir, mas tenho tido, a cada dia, menos força para me jogar adiante.

Existe uma frequência que ajusta meus pensamentos, que endireita as passadas do meu corpo quase inerte, cansado e tão consternado. Há um luto que me enfileira em carregadas reflexões, na busca por vislumbres de esperança, de um acreditar que me reerga dessa sonolência. Ainda existe uma luz. E ainda é cedo para me entregar e virar refém do acaso, das transições imprevisíveis da vida; dessas curvas que traem a tola direção dos meus pés.

Ainda que me pese as inoportunas penumbras, e os choques pesados que levo no meu peito, esforço-me para decifrar as imagens que se formam na minha mente, desconexas e confusas. Nada parece se conversar quando eu desestruturo frente à um diálogo incompreensivo, em que tento pescar significados e razões. Dilato meus olhos para distinguir, em meio ao breu, a silhueta de um mundo feroz, que ora me prende, ora me solta. Ainda é cedo para tentar entender, mas nunca é tarde para me salvar.

Eu compro o que a vida me entrega, com a temperança de quem precisa serenidade e otimismo para não debruçar sobre as escolhas fáceis. Delibero meus estilhaços, sempre na firmeza de poder me recompor para persistir. Estou a um sopro de ficar entregue, mas a um passo de me encontrar. Eu me agarro em uma força que vai muito além de mim. Estou a metros do meu limite, mas o mundo me sussurra que ainda é cedo para abandonar a luta.

Aspas do Autor: É a única coisa que eu ouço de dentro de mim, todos os dias: ainda é cedo para desistir. É por isso que ainda estou por aqui.