Remontagem

29 de março de 2014

Foto por SHA-1.



Ando em um momento passivo, mas meu zelo, meu passo raso e lento estão justificados no modo como parei para remontar os pedaços que escapuliram de mim. Os dias fragmentaram meus sentimentos tão espessos e circundados com amor. Sinto que seja uma transição, uma estação dando lugar à outra. Sinto mais nada além dessa passagem. Os sentidos esfumaçaram pelos becos.

Sou sabedor dos delitos que me aniquilaram, das densas lapadas que os galhos do destino golpearam o meu peito. Caminhei desavisado dos riscos. Por isso dei uma parada. Os vilões foram certeiros. Pelas rotas fui espalhado. Meu inteiro foi estilhaçado, e eu mal percebi. Não consigo mais verter a rima tão cintilada na minha ébria pele. Hoje sou resultado do mormaço tedioso pelas quais os sentimentos se deliberaram.

Meus dedos febris acumulam pálidas inspirações, palavras que não emergem mais com a fibra de antes, com a energia tão efervescida dos dias de outrora, quando o amor era realce nos meus olhos. Meus fragmentos voejaram pelas trilhas escusas pelas quais adentrei. Aderi a escolhas embaçadas, com a esperança de desentalar os meus sonhos esquecidos.

Meus medos se escapolem pela pele nua, alvejada e sem armadura, vítima do meu feitio teimoso em crer na existência de boa-fé pelas estradas. Fui atacado pelo meu próprio entusiasmo em ir tão espontâneo, vestido numa inocência não mais abrangida pelos cantos. Subestimei o risco, e superestimei minhas capacidades. Sou humano demais para compreender o torto da vida.

Estou em volta, à busca do que me inteira, das minhas porções quebradas e perdidas por consequência do meu jeito temerário de investir nas penumbras perigosas. Parei para remontar o meu espírito que anda em frangalhos, absorto por um cansaço plausível e de teor quase delinquente, num ato não tão inconsequente quanto persistir de olhos fechados.

Sei que o íntimo ainda pragueja as dores concebidas pelas curvas da caminhada. É nesse compasso que altero meus objetivos, desativando os ciclos – por enquanto. Porque ainda preciso rejuntar o que restou de mim, do meu templo quase desmoronado pelos tortuosos ventos das aflições. Ainda me desamparo nas frias ondulações sopradas pelo inverno, contudo, amorteço meu sentimento mais caloroso.

Parei para realocar as peças soltas, para consertar e envernizar as enferrujadas. Parei, não por inércia, mas pra renovar. É preciso estar inteiro novamente, para continuar a busca pelos meus sonhos mais felizes.



Aspas do Autor: Está na hora de realinhar a estrutura, reunir os fragmentos e renovar. Mas são tempos difíceis... Espero conseguir.

Do nosso voo...

22 de março de 2014

Peter Pan by GiftLee in deviantArt



Teu sorriso estaciona em meu olhar, trazendo consigo uma sucessão súbita de pequenos encantamentos, advindas de sua proximidade amorosa e poética. Você voa dentro de mim, espalhando calma e sossego, dilatando o néctar de uma esperança há muito esquecida em meus cantos empoeirados. A poesia que nasce sob seu rasante voo, em direção ao meu interno horizonte, é vestida com amor, o mais lindo, um que nunca na minha vida, pude sentir. 

Teu jeito tem a mania de me fazer criar asas e me dá espaço para que eu alcance o céu da forma mais leve possível. Meu horizonte tem nome, endereço e as cores mais bonitas. Você é pôr-do-sol e aurora das minhas manhãs, despertando continuamente o que sempre nos uniu: Poesia. Verso na delicadeza que és e me elo a ti. Então vem, temos o infinito à frente! 

Seu coração se alia ao meu, como um pássaro que num despretensioso voo alcança o limiar do horizonte, mesclando-se à paisagem. Você traz a rima para os meus versos abandonados, costurando sonhos e tecendo a poesia de uma paixão que deseja junto, alçar voo até a felicidade, tão espelhada pelo encontro dos nossos olhos apaixonados. Vamos voar! O amor é o que nos sustenta no ar.

Voaremos uma eternidade toda, sem perder a cumplicidade contida em nossas asas, a sintonia e a certeza de que há um céu inteiro para nós e que, faça chuva ou faça sol, estaremos lá, no alto, em gratidão. Porque temos um ao outro. Seu abraço é meu abrigo e, alados, somos nossa própria casa. 



Aspas do Autor: Um voo escrito a duas mãos, parceria linda com a amiga e querida escritora Wanderly Frota, um anjo de candura e um talento nato nas letras. Foi um prazer escrever com ela. O nosso voo ficou lindo, lindo!!

Todavia

15 de março de 2014




Eu
a via
enquanto
ia
[e me entristecia]

eu
havia
sido
alegria
[era só euforia]

eu
vivia
numa
via só de
poesia
[agora sofria]

mas
ainda
havia
amor
em mim
[todavia]



Aspas do Autor: Há amor, ainda, em mim...

O último dia de folia

1 de março de 2014




Era o primeiro dia. As ruas se enfeitavam com brincantes fantasiados sob os tecidos de alegria, num ápice de uma extravagância dócil e afortunada. As vias seguiam permeadas por um sapateado de pinturas que serpenteavam sorrisos em folias entrelaçadas, flagrada não apenas nos dedos, mas nos corações esfuziantes com as marchinhas formosas, entoadas pelos peitos repletos de amor. A diversão fazia-se tórrida pelas ruelas antigas daquela cidade interiorana, em passos céleres e abençoados por uma tradição secular; um legado erigido naquelas históricas ruelas, em meio a monumentos e prédios mantenedores do espírito legítimo do carnaval.

Longe dali, mas não indiferente à folia – que mal iniciara –, o peculiar moço vigiava, seus olhos cintilavam as cores alegóricas do seu delicado coração, propagando uma apoteose azulada e poética de paixão. Refletia em si a mágica exilada pelos reverberados cantos dos corredores íntimos de si, decorados por afeições românticas e cantorias mansas, plenamente harmoniosas e aprazíveis. Sua sonante alma palpitava o regozijo de um amor raro, destilado no seu afável jeito de se entregar ao mundo. Dispersava pelo corpo, sonhos fulgurantes, emoções preciosas e gestos aveludados; delicadezas costuradas em sua veste de duas cores – um terno em preto e branco – estampadas com a mais linda e pura sensibilidade.

Estava a caráter, com sua habitual fantasia de Pierrot, um rosto mascarado pelo pó branco vazio e olhos contornados pela melancolia sombria de sua doce e fascinante tristeza. Aguardava o momento de se espreitar pela sombra da folia. Aninhava-se na Sapucaí do coração, escondido, para despertar – pelas ruas – seu mistério arrebatador, sua sedutora e cativante presença e reger a orquestra do seu sonoro e terno sentimento. Seu rosto esbranquiçado era moradia para uma permanente lágrima, o sinal velado de uma ausência, o desassossego de uma tristeza funda que o acometia [um amor que não o queria]. Entretanto, mesmo sob a penumbra de sua dor, expelia pelo seu semblante uma abundante fé, um romantismo jamais visto.

De longe seguia a folia, dando passos cautos pelos becos mais solitários, acentuando seu debute de afetos e carícias, numa vã tentativa de se debruçar em torrentes de sentimentos esquecidos, em magias esfareladas pelos desavisados e inconsequentes. Seu passo ia de encontro ao deleite do saudoso tempo em que realmente se importavam com o amor. Expandia sua ternura em feições pitorescas, espalhando serpentinas de encanto naquele bucólico lugar. Dançava seu sentir pueril, aplumado em viçosas coreografias. Sua alma fazia estripulia, num inocente jogo com a vida, costumeiro depreciador dos seus quereres. Seu silêncio era um trio elétrico, mais berrante que o suspiro fútil propagado pelas massas mundanas.

O primeiro dia de folia era quando sua alma nascia e resplandecia em júbilo, sua existência. Ele vivia até o findar do feriado. Sorria, enquanto bailava zombeteiro, sem importar com o que lhe afligia, alastrando as ruas com os confetes de sua poesia lírica. Contudo, os corredores do destino desmereciam seu sincero escapulir. Ao ouvir passos, seu coração quase saiu do eixo. Por pouco não pulou pela boca. Escondeu-se, atinado num vertiginoso passo, por detrás de um poste revestido com retalhos coloridos e ornado com serpentinas.

Sem frisar seus olhos, pôde escutar o som de um casal pulando animado e apaixonado. Abruptamente seu pulso acelerou. Por trás dos retalhos, pôde ver as pernas dos brincantes. Não foi capaz de crer. Seu respiro extinguiu. O coração sustou. O universo ao redor eclodiu numa treva inimaginável. Estreitando os olhos por uma fresta entre os retalhos a viu, sua musa, a moça dona dos olhos azuis reluzentes como diamantes; de um riso que ostentava a beleza das belezas, sacralizada pelas covinhas delicadas e o blush intenso nas maçãs do rosto. Os caracóis ruivos do seu cabelo chispavam amor aos quatro cantos, tamanha era sua graciosidade. O vestido branco e sua saia rodada tremeluziam uma etérea magia, que impregnava qualquer um com um meigo desejo, um infindo apaixonar.

Mas sua alma enegreceu ao presenciar o astuto rapaz com a roupa de losangos coloridos, abraçado e aos beijos com sua amada. Sentiu-se dilacerado por dentro. Um tremor de angústia suscitou nos seus olhos, agora avermelhados por um copioso choro. Cada beijo esfaqueava seu peito como um lancinante câncer. Via estático, sem forças pra fugir, como se a gravidade o puxasse cem vezes mais... Pôde ouvir claramente o rapaz dizer que a amava. E se viu aflito ao imaginar sua musa responder o mesmo. Ia ser o derradeiro fim, numa lúdica conclusão melancólica. No momento em que ela responderia, um forte vento surrupiou pelas ruas. Os retalhos no poste, que o escondia, voaram, deixando-o a vista dela, que ao vê-lo, emudeceu. Uma lágrima de diamante caiu de seus olhos, tilintando no chão.

Foram minutos angustiantes e dolorosos. Memórias de carnavais passados vieram à tona: a serelepe folia na praia; o primeiro beijo; o ato encenado em público e a dança versada pelos seus toques. Fitaram-se com os corações e as lembranças, e uma grandiosidade de encanto fulgiu pelo mundo. Mas o moço não queria ouvir o que ela diria ao rapaz que o abraçava. Certamente diria que o amava. Extraindo de si a dor que lhe exauria, ascendeu numa incomum força da alma, e fugiu pra bem longe dali, para não se ferir com as pontiagudas palavras. Contudo, ela não respondeu nada ao seu par. Sorriu – encapsulando a tristeza em si – e o beijou [escravizada], certo de que seu coração, agora, desfilava no salão do belo moço que acabara de fugir...

A centena de metros dali, o moço, sentado num insalubre beco, chorava escondido. O tempo fechou e sonoros trovões ecoaram pelos céus. Uma estrondosa chuva, inesperadamente, despencou do seu universo de sonhos despedaçado. Por um instante, quase morreu. Sem mais ânimo, fugiu e nunca mais ninguém o viu naquele carnaval. No átimo de sua fuga, a rosa da sua lapela caiu no chão, vitimando as pétalas sob as frias e pesadas gotas de chuva...

Para todos era apenas o primeiro dia de folia. Mas pra ele, acabou sendo o último...

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Vejam os outros carnavais:



Aspas do Autor: Dessa vez não houve um toque, um abraço sequer, tampouco um beijo. O carnaval mal tinha começado. Bruscamente interrompido por um precipitado encontro... Quem sabe como se darão os carnavais futuros? Mais um conto de Pierrot e Colombina, agora só ano que vem...