Ilustração: Ivelin Trifonov |
A chuva, fraca, respingava morna em seu rosto magro, de semblante abatido. Sentia o calor embriagar-se até o coração. Sem delongas fugia. De algo, de alguém e de si. Percorria a penumbra de uma rua assaltada pelo pavor da madrugada. Uma noite fragilizada pelas badaladas de horas vagarosas e impertinentes. Sob as gotas pesadas rastejava os pés sem rumo, sem direção, carregando em suas mãos a culpa pelo ato desvairado e descomedido.
O coração palpitava quase sonolento, sofrido pela tensão suscitada há pouco. Tremia com o frio que preenchia o íntimo. As nuvens se recolhiam como uma cortina fechando o espetáculo. Conclusão épica, mas trágica; um desfecho como o fim de uma leitura, onde o fim não agrada; de um dia retirando-se, em trovoadas, para a noite comparecer. Era o fechamento de um ciclo. Abrupto. Revelador. Assustador. Seus dedos convalesciam diante do que restou. Não havia alento. Só dor.
Os passos lhe conduziam até o mirante. Mas ele sentia ir ao inferno. Mais do que quando vira. Os nervos explodiam. Mas não como antes, em cólera. Agora era de impotência e apatia. Era o resultado de um ser acometido pela adrenalina de vestir o rosto com uma indelével mácula. Sua feição era outra, era a de alguém escalpelado, com a máscara caída, com outra face construída por um vil momento; um fatídico acontecimento que o traumatizou.
Parou diante da sacada do mirante. O rio brilhava em reflexo com a luz estrelada da noite. Os olhos culposos refletiam a dor de outros olhos que o fitavam estáticos, chorosos. A imagem que ali ficaria eternizada. Seu choro era contido, engolido pelos soluços fortes, impávidos e sem ritmo. As estrelas não entenderiam o alcance de sua consternação. Faltou hesitação e medo, um receio que o impedisse. Mas ao vê-los, ao flagrá-la, o ódio permeou suas veias, desabando qualquer máscara humana que ainda lhe cabia.
A cena se repetiu pela sua mente em segundos. A culpa que lhe abraçava tinha toneladas. Arrependera. Sua nova face, antes oculta pelos demônios, formou-se no sussurro de um peito amargo, de uma tentação malévola, atendida na pressão da dor. Com um tiro matou o amante. E em segundos que pareciam séculos, matou a mulher de sua vida logo após, a quem lhe contemplara como se pedisse misericórdia. Segundos horripilantes para quem caiu em si minutos depois ao ver o sangue de sua amada. Abraçou-a em uma fúnebre despedida e disparou em fuga, ensandecido.
Agora diante da sacada do mirante, chorava pela face do desespero. Ouvia ao fundo a sirene de polícia. Nenhuma prisão seria mais dolorosa do que a imagem que ficara de lembrança. Num ato consciente, mas vestido em loucura, apontou a arma em seu próprio rosto. O cano entre os olhos lhe afundava na alma. Não hesitou. O som ecoou pelo horizonte. As estrelas cintilaram, testemunhas de seu próprio julgamento. O rio levemente se ondulou e pássaros próximos, assustados, alçaram voo para longe. E o mundo viu um homem se matar pela face que ele nunca queria ter desmascarado de si mesmo: a da vingança.
Aspas do Autor: Às vezes num ato ensandecido a face humana dá lugar a outra. É um dos tantos dilemas humanos. A que ponto a vingança tem justificativa? Ao meu ver, nunca tem... O próprio prejudicado é quem a alimenta. O homem do conto, num descuido de raiva desmascarou sua face humana e cometeu dois assassinatos. Nada justifica matar. Rápido ele tornou-se ciente de sua loucura. Suicidar-se foi outro ato inconsequente, embora demonstrando a fraqueza dele em lidar com o que tinha feito. Mas nem todos são assim. Muitos são frios a ponto de nem se arrependerem, e ainda ficarem soltos... *Lembrança: mês passado o blog comemorou 6 anos de existência! :)
9 comentários:
Excelente narrativa!
Muito mais desafiador demonstrar o que se é do que deixar de ser.
Nossa Alê! Muito bom esse texto..
Me prendeu demais!
Essa última frase valeu o texto inteiro.....
www.chadecalmila.com
Se todos aqueles que se vestem de sangue alheio e corpos mortos tivessem o mesmo exame inclemente de consciência do homem do conto, certamente os suicídios seriam tão frequentes quanto os crimes que o propiciaram. Eu não vejo forma mais justa de punição para uma morte covarde do que uma vida por outra, exceto em casos de legítima defesa.
Gostei muito do texto, principalmente do metaforismo.
http://omundoemcenas.blogspot.com.br/
Abraço
Primeiro vou falar dos seus 6 anos. Como é bom saber
que esta no ar tanto tempo. ja vi tantos desistirem...manter um blog como o nosso, é bem dificil. Mas espero que eu possa vir aqui por muitos e muitos anos!
Penso que um descuido de raiva vira rapidamente ódio é facil cometer atos inconsequentes como matar e morrer(suicidio)
belo texto.
Deixo Beijos e um coração gigante pra vc.
Seu texto narrativo poético me deixou sem palavras, fui arrepiando a cada linha lida.
O impulso/raiva são os piores inimigos de cada um.
Adorei, e parabéns pelos seis lindos anos de blog.
Continue sempre nesse mundinho delicioso do blog.
Beijo
Onde vi a um filme que tinha como assunto principal o ódio. E até recomendo "A Outra face da raiva". Assim como seu texto, nos faz parar para pensar em o quanto a raiva, o ódio e demais sentimentos nada positivos de se sentir pode nos destruir por dentro. Até mais, ótimo texto. http://realidadecaotica.blogspot.com.br/
Caramba!
Eu achando que podia ser qualquer coisa e você surpreendeu no final! Muito bom!
Eu também acho que a vingança não justifica, acredito que silenciar-se diante de uma afronta é muito melhor do que qualquer outro ato. Além do mais, depois de ter feito o que fez, não foi capaz de assumir a responsabilidade e isso é ainda pior.
Identidade Aleatória
Muito bom! Acredito que todos temos uma face negra e escondida, que só vem à tona quando perdemos a razão. Tá aí a prova disso. Adorei o detalhismo!
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