E quem disse que é, nunca amou...
Foi num fim de tarde, no café na esquina da rua em frente ao parque. Foi num esbarrão. O copo de milk-shake de morango caiu na blusa de seda azul da moça. E ele acabou molhando seu suéter vinho com o seu suco de laranja. Nenhum dos dois soube o que fazer. Depois de tanto tempo acostumados à suas dificuldades, dificilmente se esbarravam em alguém. Ficaram visivelmente sem graça e um pouco deslocados. Ficaram soltando palavras no ímpeto do acidente e se confundiam em pedidos de desculpas embaralhados com perguntas sobre o estado um do outro. Estavam nervosos e preocupados.
Em meio à confusão do esbarrão suas mãos se encontraram. Neste exato momento, as outras pessoas ao redor num instante desapareceram. A realidade ao redor se diluiu. O roçar de seus dedos soube elucidar bem algo que eles tanto buscavam decifrar. Dois universos se chocaram. Talvez num primeiro momento eles não soubessem a magnitude daquela sensação, mas algo os deixou inebriados. Os dois tinham seus tatos aprimorados. Talvez por conta de suas necessidades. O silencio permeou um pouco aquele inusitado encontro. Mas mal eles sabiam, aquela mudez explicava com maestria o que surgia. Inesperado? Quem sabe?
A calmaria então foi morar no semblante dos dois, embora isso não fosse relevante para eles. A pele um do outro ardia, mas em fragrância. E os dois se sentiram, exalaram e se entenderam numa muda interpretação. Leram o que suas peles sussurravam uma para a outra. Ambos ficaram enrubescidos. Desvencilharam os dedos sob um acanhamento mágico que reluzia no jeito puro dos dois. Mas sentiram um ardor percorrer o corpo. Agora depois do susto conseguiram sentir com mais plenitude o perfume um do outro. E os pensamentos flutuaram sobre tapetes invisíveis de poesia. Os toques tocaram, só que mais fundo, mais além da pele. Os perfumes passearam pelo olfato, mas aquele que vive lá dentro.
E acabaram se sentando juntos numa mesa para se desculparem, se ajudarem. Mas no fim o esbarrão acabou sendo deixado de lado e quaisquer problemas foram esquecidos. Suas mãos se encontraram novamente. E o modo como se tocavam e buscavam um ao outro era bastante familiar. Isto por si só foi suficiente para que descobrissem o melhor que tinham em comum. E não era só o apuro no tato. Era mais. Eles sorriram em sintonia diante da descoberta. Seus dedos falavam um ao outro. Suas mãos se confessavam e se rendiam diante daquela intervenção do destino.
Eles conversaram muito. Ele falou de seu cotidiano, de seu gosto por pop rock, bateria e pintura. Ela falou de sua fissura por balé, por flores e violão. Ela falou de seu gosto em ler, e ele em compor canções. Ela se emocionou ao falar de seu cachorro de estimação, o Lu. Ele contou o quanto ama sua avó Neida; que quer se tornar um artista plástico. Ela disse que adora cheiro de chuva e ele que ama cheiro de rio. Ele falou da sua vontade louca de viajar para Nova Zelândia e se aventurar. E ela contou que sonha ir para Madrid para namorar.
Por durante horas ficaram ali. Vez ou outra ele afagava o rosto dela para senti-la, para delineá-la com a pura imaginação. Suas mãos macias passeavam pela textura dos cabelos dela. As mãos dela pareciam compor melodias ao acariciarem o rosto doce do rapaz. As mãos dele pareciam seguir o ritmo das batidas dos seus corações. E os dela soluçavam em sentimento. Muito eles imaginavam. E isso era o que os encantavam. Suas mentes ficavam inundadas em supostas imagens. E tudo era perfeito por isso. Porque era da forma como eles queriam e pensavam.
Algumas coisas se perdiam porque os dois não podiam enxergar. É verdade! Ela tinha olhos azuis, e mechas louras que estribilhavam seus encaracolados. Mas ele nunca iria conhecer. Ele tinha olhos castanhos, e cabelos de um preto vivo que jamais ela iria ver. Ela tinha uma pele branca, e ele era moreno. Detalhes assim eles jamais iriam mensurar. Mas o que era isso diante do que podiam ler no toque, do que podiam enxergar só no farejo leve do coração? Nada. O que era importante eles viam sem que precisassem ver. Sei que os encontros continuaram. Bem ali, no café na esquina da rua em frente ao parque. O sentimento cresceu. A história dos dois se firmou e transcendeu pra além dali. Um bonito enlace de amor surgiu de forma inesperada, mas não permaneceu por acaso. Afinal de contas, eles eram cegos, mas o amor não...
Aspas do Autor: Porque às vezes não é preciso ver pra saber, para sentir... As vezes os perfumes se mesclam como bons ingredientes, e as peles se entendem perfeitamente, como peças de encaixe... Numa muda sintonia! O amor não é cego. Nós é que às vezes somos... Diante dos "esbarrões"... Meu carinho à todos!