O último dia de folia

1 de março de 2014




Era o primeiro dia. As ruas se enfeitavam com brincantes fantasiados sob os tecidos de alegria, num ápice de uma extravagância dócil e afortunada. As vias seguiam permeadas por um sapateado de pinturas que serpenteavam sorrisos em folias entrelaçadas, flagrada não apenas nos dedos, mas nos corações esfuziantes com as marchinhas formosas, entoadas pelos peitos repletos de amor. A diversão fazia-se tórrida pelas ruelas antigas daquela cidade interiorana, em passos céleres e abençoados por uma tradição secular; um legado erigido naquelas históricas ruelas, em meio a monumentos e prédios mantenedores do espírito legítimo do carnaval.

Longe dali, mas não indiferente à folia – que mal iniciara –, o peculiar moço vigiava, seus olhos cintilavam as cores alegóricas do seu delicado coração, propagando uma apoteose azulada e poética de paixão. Refletia em si a mágica exilada pelos reverberados cantos dos corredores íntimos de si, decorados por afeições românticas e cantorias mansas, plenamente harmoniosas e aprazíveis. Sua sonante alma palpitava o regozijo de um amor raro, destilado no seu afável jeito de se entregar ao mundo. Dispersava pelo corpo, sonhos fulgurantes, emoções preciosas e gestos aveludados; delicadezas costuradas em sua veste de duas cores – um terno em preto e branco – estampadas com a mais linda e pura sensibilidade.

Estava a caráter, com sua habitual fantasia de Pierrot, um rosto mascarado pelo pó branco vazio e olhos contornados pela melancolia sombria de sua doce e fascinante tristeza. Aguardava o momento de se espreitar pela sombra da folia. Aninhava-se na Sapucaí do coração, escondido, para despertar – pelas ruas – seu mistério arrebatador, sua sedutora e cativante presença e reger a orquestra do seu sonoro e terno sentimento. Seu rosto esbranquiçado era moradia para uma permanente lágrima, o sinal velado de uma ausência, o desassossego de uma tristeza funda que o acometia [um amor que não o queria]. Entretanto, mesmo sob a penumbra de sua dor, expelia pelo seu semblante uma abundante fé, um romantismo jamais visto.

De longe seguia a folia, dando passos cautos pelos becos mais solitários, acentuando seu debute de afetos e carícias, numa vã tentativa de se debruçar em torrentes de sentimentos esquecidos, em magias esfareladas pelos desavisados e inconsequentes. Seu passo ia de encontro ao deleite do saudoso tempo em que realmente se importavam com o amor. Expandia sua ternura em feições pitorescas, espalhando serpentinas de encanto naquele bucólico lugar. Dançava seu sentir pueril, aplumado em viçosas coreografias. Sua alma fazia estripulia, num inocente jogo com a vida, costumeiro depreciador dos seus quereres. Seu silêncio era um trio elétrico, mais berrante que o suspiro fútil propagado pelas massas mundanas.

O primeiro dia de folia era quando sua alma nascia e resplandecia em júbilo, sua existência. Ele vivia até o findar do feriado. Sorria, enquanto bailava zombeteiro, sem importar com o que lhe afligia, alastrando as ruas com os confetes de sua poesia lírica. Contudo, os corredores do destino desmereciam seu sincero escapulir. Ao ouvir passos, seu coração quase saiu do eixo. Por pouco não pulou pela boca. Escondeu-se, atinado num vertiginoso passo, por detrás de um poste revestido com retalhos coloridos e ornado com serpentinas.

Sem frisar seus olhos, pôde escutar o som de um casal pulando animado e apaixonado. Abruptamente seu pulso acelerou. Por trás dos retalhos, pôde ver as pernas dos brincantes. Não foi capaz de crer. Seu respiro extinguiu. O coração sustou. O universo ao redor eclodiu numa treva inimaginável. Estreitando os olhos por uma fresta entre os retalhos a viu, sua musa, a moça dona dos olhos azuis reluzentes como diamantes; de um riso que ostentava a beleza das belezas, sacralizada pelas covinhas delicadas e o blush intenso nas maçãs do rosto. Os caracóis ruivos do seu cabelo chispavam amor aos quatro cantos, tamanha era sua graciosidade. O vestido branco e sua saia rodada tremeluziam uma etérea magia, que impregnava qualquer um com um meigo desejo, um infindo apaixonar.

Mas sua alma enegreceu ao presenciar o astuto rapaz com a roupa de losangos coloridos, abraçado e aos beijos com sua amada. Sentiu-se dilacerado por dentro. Um tremor de angústia suscitou nos seus olhos, agora avermelhados por um copioso choro. Cada beijo esfaqueava seu peito como um lancinante câncer. Via estático, sem forças pra fugir, como se a gravidade o puxasse cem vezes mais... Pôde ouvir claramente o rapaz dizer que a amava. E se viu aflito ao imaginar sua musa responder o mesmo. Ia ser o derradeiro fim, numa lúdica conclusão melancólica. No momento em que ela responderia, um forte vento surrupiou pelas ruas. Os retalhos no poste, que o escondia, voaram, deixando-o a vista dela, que ao vê-lo, emudeceu. Uma lágrima de diamante caiu de seus olhos, tilintando no chão.

Foram minutos angustiantes e dolorosos. Memórias de carnavais passados vieram à tona: a serelepe folia na praia; o primeiro beijo; o ato encenado em público e a dança versada pelos seus toques. Fitaram-se com os corações e as lembranças, e uma grandiosidade de encanto fulgiu pelo mundo. Mas o moço não queria ouvir o que ela diria ao rapaz que o abraçava. Certamente diria que o amava. Extraindo de si a dor que lhe exauria, ascendeu numa incomum força da alma, e fugiu pra bem longe dali, para não se ferir com as pontiagudas palavras. Contudo, ela não respondeu nada ao seu par. Sorriu – encapsulando a tristeza em si – e o beijou [escravizada], certo de que seu coração, agora, desfilava no salão do belo moço que acabara de fugir...

A centena de metros dali, o moço, sentado num insalubre beco, chorava escondido. O tempo fechou e sonoros trovões ecoaram pelos céus. Uma estrondosa chuva, inesperadamente, despencou do seu universo de sonhos despedaçado. Por um instante, quase morreu. Sem mais ânimo, fugiu e nunca mais ninguém o viu naquele carnaval. No átimo de sua fuga, a rosa da sua lapela caiu no chão, vitimando as pétalas sob as frias e pesadas gotas de chuva...

Para todos era apenas o primeiro dia de folia. Mas pra ele, acabou sendo o último...

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Vejam os outros carnavais:



Aspas do Autor: Dessa vez não houve um toque, um abraço sequer, tampouco um beijo. O carnaval mal tinha começado. Bruscamente interrompido por um precipitado encontro... Quem sabe como se darão os carnavais futuros? Mais um conto de Pierrot e Colombina, agora só ano que vem... 

10 comentários:

Flor de Lótus disse...

OI,ALF!Nossa logo já no primeiro dia o carnaval dele teve um desfecho assim tão triste,mas a vida é assim nem sempre as coisas são como a gente quer ou gostaria que fossem.
Um ótimo restinho de carnaval!
Beijosss

Ariana Coimbra disse...

Eu preciso nem me lembrar de carnavais passados, e de não participar dos presentes.
Apesar de que as pessoas usam "máscaras" o ano todo, não só nele.

Beijos

Bandys disse...

Ahhhh, mais a vida segue e virão outros carnavais!!

Eu mesma, to aqui mortinha de brincar, kkkk


beijos

e vim heinn hahahahaha

B. disse...

Que triste! As vezes só o amor não é o suficiente, as vezes o destino se encarrega de separar dois amantes, fazendo com que cada um vá para o seu lado e mesmo com tamanho sofrimento, posteriormente é que se entende os motivos do tal destino.
Ah, esses amores de carnavais podem marcar o ano todo!
Texto bastante expressivo e cheio de metáforas. Gostei bastante.

Camila disse...

Que lindo...
achei triste também!! conheço muitos casais que brigam em época de carnaval, mas acho que não terminam!!
algumas pessoas são fracas em relação a essa festa .. ne?

TOM MORAIS disse...

Melancolicamente lindo, como todos os seus textos, eu sempre digo isso, mas é que eu me surpreendo demais com a sua escrita. Muito linda a forma como você retratou o amor carnavalesco, me tocou profundamente.
cronicasdeumlunatico.blospot.com

Gabriela Freitas disse...

Por que você faz isso comigo? Não consigo ler um texto seu sem ficar horas depois viajando nele, isso não ta certo, viu.
Sou apaixonada pelos seus textos. ♥♥
É triste um carnaval acabar no primeiro dia e mais triste é ter que esperar um ano para que os dois se reencontrem;
Que ele esteja feliz, agora.
http://www.novaperspectiva.com/

Anónimo disse...

Olá, Alexandre, querido!

Que é feito de você? Espero que esteja tudo bem.

Olha, já li teu texto, há dias, ontem, e hoje, ainda mais uma vez. NOTA 11.

De facto, e sem qualquer bajulação, tu sabes mesmo escrever prosa. Me envolveste do princípio ao fim, porque cada linha dele, tem um pormenor interessante e nos transmite uma mensagem, já para não falar de todo o conteúdo semântico do mesmo.

USAS A ERUDIÇÃO COM MUITA NATURALIDADE, O QUE NÃO É FÁCIL.

Inteligentemente, aproveitaste o carnaval para "bordar" esse texto maravilhoso e muito bem desenvolvido.

Píerrot, que inicialmente era uma personagem da comédia, e que nos intervalos dos espetáculos entretinha o público, tipo bobo da corte, passou a ser, posteriormente, uma personagem de alto gabarito. Tu a soubeste "aproveitar".

O Pierrtot, de que aqui nos falas, é muito real, e infelizmente há muitos moços, sentindo e desejando o que ele quer, sua colombina, que se foi ou que irá aparecer.

A colombina surgirá, aliás, quase sempre aparece nessas e noutras alturas, mas quando já se sofreu, por amor, há quem fuja para não recordar momentos passados, que só trazem más lembranças.

Teu texto está magistral. PARABÉNS!

Resto de boa semana.

Beijos, carinhosamente.

PS: passa lá no "Luzes", porque há algo diferente. Quero saber tua opinião. Obrigada, Alex.

Mari Mari disse...

A história da colombina é muito romântica, realmente, uma que chama a atenção. Seu conto fez o carnaval soar tão... Clássico. É uma pena que a realidade seja um pouco diferente. E a tristeza do fim, foi sensacional. Com certeza, na dúvida do que usar pra fazer arte, eu opto pela melancolia. Ela sempre funciona. Mas só nas mãos de alguem que escreva bem, é claro.

Anônimo disse...

Certas nostalgias doem mesmo, e é horrível nunca conseguirmos apagar certas coisas das nossas vidas.

Mas temos que continuar...