A última dança

23 de fevereiro de 2013




"[...] Ele que estava de rastros,
Pula, e tão alto se eleva,
Como se fosse na treva
Romper a esfera dos astros!... [...]"


Madrugada azulada, banhada com a delicada poesia de uma lua cheia. Ruas praticamente desertas, mas brilhantes, enfeitadas com uma apoteose harmônica. Ladeiras e vielas, órfãs dos animados folguedos que sucederam. A decoração ainda jazia. Mas a folia chegara ao fim. Porém, cometas no céu anunciavam a chegada. Colorações de um invejável glamour dispersaram da pele de um nobre rapaz. Era a sua deixa para bailar sua alma idílica e inundada com sonhos singulares, olhos decotados pela simbiose graciosa entre a beleza e o amor.

Ele desfilava sua solidão faceirada e seu teor romântico, pelas diminutas ruelas daquela cidade histórica do interior, com um fulgor que alastrava a pura e demasiada harmonia dos universos. O brilho de seus passos acentuavam as esquinas vazias com alegorias e enfeites invisíveis, mas predominantes em um encanto sibilante com terno amor. Os dedos de suas mãos regiam a orquestra daquela mudez noturna. Os dedos tamborilavam em pleno ar, feito serpentinas a espiralar pelos cantos, a sinfonia de um coração solitário, sedento pelo júbilo dos sonhos. Seu olhar manso, triste e melancólico, sua presença febril e apaziguadora, eram redutos de um mundo que abrangia as mais variadas nuances do íntimo. Tristeza e alegria se enlaçavam com fitas coloridas de cetim.

Com o seu habitual terno de duas cores – um lado preto e o outro branco –, ele percorria aquelas ruas desertas com a força palpitante de sua fé. Ainda que na face esquerda, a velha lágrima permanecesse, ali, cristalizada, ele carregava no peito a perene idolatria pelos detalhes extraordinárias daquele mundo, por vezes tão cruel. Seu semblante sereno e leve entoava uma silenciosa e meiga trilha, melodia que se clamava mais sonora que qualquer trio elétrico. Seu olhar fatigado e seu baloiço corporal aprumavam pelos redutos sinuosos daquelas antigas construções coloniais. Era poesia pura a adentrar no seu peito acolhido com ternura. No desapego da dança solitária, sob o lúdico palco da praça central, iluminada pela luz arroxeada da lua, ele encantou, lançou seu apaixonado corpo ao além daquelas curvas de pedra. Ele se inseria na história, feito personagem vital dela.

Despretensiosamente avistou o grande Teatro Central. Lugar que realizava o tradicional baile de carnaval. Ouvia a poesia vociferar pelas compridas janelas daquele prédio monumental do século XIX. Perto do amanhecer, o baile parecia anunciar seu fim. Ele via as pessoas despedindo daquelas declamações que eriçavam e faziam seus pés bailarem no salão. Sob seu tapete aplumado com decotes dourados e amorosos, ele se insinuou até o recinto. Curioso pela melodia que adentrava em seu ouvido, feito toque de mãe, acolhendo seu tão apaixonado coração. Ninguém circundava mais. Ele se inclinava pelas paredes e sua magia seguia junto, colorindo o ambiente com as matizes poéticas de sua alma ímpar. Sua presença aflorava o lugar. Ele perfumou o salão com um aroma de amor jamais visto.

Ainda que a tristeza e a melancolia, pela solidão, se evidenciavam nele, seu jeito esperançoso, inundado de fé, abraçaria com afeto sem igual quem o visse. Com delicados passos, foi rodopiando calmamente pelo salão de dança, agora vazio, abandonado pelos amores de sempre. Foi nessa dança, sob esse palco deserto, que num leve escorregar, a flor de sua lapela voou. E consigo levou a imponente rima de um coração afeitado em sonhos cheios de cores, em amores repletos de odores inebriantes. Seus olhos aprumaram. Um imenso espelho na parede do canto leste. No chão, logo à sua frente, a flor ali pousou. Ele dançou até lá. Seu coração atiçava encanto.

Após baixar e colher a bela rosa, seu olhar se prendeu no gigantesco espelho. Foi quando seus olhos brilharam em tons de uma pureza magnífica, só vista em duas outras ocasiões. Foi quando o sorriso, seu mais gracioso e raro gesto se evidenciou romântico e acolhedor pela face, agora rubra em emoção. A lágrima do ano anterior umidificou e dissipou; ao vê-la pelo reflexo; ao apanhá-la com suas íris peroladas e decoradas com o seu sentimento. O universo acabava de estagnar. Os anjos do céu frearam seus voos para assistir tão belo encontro, tão apaixonado embate de duas pessoas que se amavam. Cometas tremeluziram e, uníssonas, cantaram por meio dos dois corações. Ela sorriu fácil inundando os olhos com a emoção de vê-lo novamente.

Desde o ano passado, naquela peça de teatro. Era a terceira vez que se viam. O destino novamente os uniu. Não falaram nada. Ele até esqueceu o triste fim do encontro passado, a sua despetalada flor agonizando solitária nas ruas. Seus sorrisos diziam por si só. Seus olhos se amavam numa sintonia única, jamais encontrada em todo o universo. Ele se virou e andou solene até o abraço daquela menina com maçãs rosadas e seus cabelos ruivos, pincelados com a doçura infante da paixão. O semblante triste dele sumira. As dores esvaíram e a felicidade adentrara com ímpeto. Não se sabe como, mas uma harmoniosa valsa começou. E os dois, guiados pelos instintos do íntimo, pelas mãos macias do destino, começaram a dançar; afloraram e passearam coladinhos, pelo tão nobre e rubro salão, decorado com um magnífico mosaico de romantismo.

No roçar suave de seus corpos, incandescentes em alegria, se beijavam intensamente. A dança deles faiscava, com fulgor, o amor latente, joia rara, elemento dedicado e de singular existência. Cortinas e luminárias, lantejoulas e confetes alumiavam a presença sutil dos dois naquele vazio salão. Dominavam o ambiente com um teor imensamente sedutor, mas doce. A beleza se agigantava pelas paredes coloniais daquele prédio histórico. Amaram-se sob uma primorosa valsa, trilha composta unicamente para aquele par de amores. Despretensiosamente se aplumavam e acariciavam um ao outro, sob cada melodia entoada. Até o momento da luz do dia se anunciar tímida pela grandiosa janela do ambiente. Era hora.

Entreolharam-se, ávidos. Trepidavam em um receio imponente. A valsa continuou, mas eles se soltaram. Escutaram passos. Alguém adentrava no recinto. Ele temia. Ela suava frio. O moço precisava ir. Ele estendeu a mão, como nas últimas vezes, com a esperança dela aceitar o convite. O sorriso nela se desfez. Lágrimas caíram sorrateiras pelos seus olhos de brilho inigualável. Um passo pra trás foi suficiente para ele perceber. O olhar do nobre rapaz murchou e ficou em trevas. Num estalo, num ritmo triste e leve, ele pulou até atrás de uma coluna. Um cavalheiro entrou no salão chamando a moça. Aturdida, mas decidida, foi até os braços do outro. Abraçaram-se. O moço, por trás da coluna, via de soslaio ela dar as mãos para o rapaz vestindo a roupa colorida com retalhos de losangos. O universo se fechou em plena dor.

Seu sorriso o abandonou. Sua face enegreceu. A tristeza assolou seu peito tão apaixonado. As luzes se apagaram, a decoração no teatro perdeu sua cor. Enquanto via os dois saindo, seu semblante foi se adornando com uma tristeza de teor angustiante. Seu rosto jazia agora, sem o brilho de sua poesia. Ela, como que sentindo, virou o rosto para vê-lo. Uma lágrima dela se fez diamante e tilintou brilhante na entrada do teatro. Do moço, uma lágrima novamente caía do seu olho esquerdo. Cristalizou-se mansamente, para sempre, no seu rosto. Os dois se amavam. Mas parecia um amor impossível. Quando ela se foi com o outro, uma neblina de agonia se preencheu no belo e suntuoso coração do rapaz. Ele, então, perdido em si, pulou uma das janelas e se despediu pelos becos e ladeiras daquela histórica cidade mineira. Sem perceber que sua rosa, antes tão fragrante e bela, tinha caído no centro do salão. Agora murcha e sem cor.

A luz fulgurante do dia penetrou pela janela do teatro, evidenciando a morta flor. A valsa inesperadamente findou. O silêncio aplacou-se no salão. O dia de cinzas nasceu amparado sob um clima de angústia e muita amargura. Aquela tinha sido a última dança do carnaval. E talvez, a deles também...

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Este foi o terceiro encontro deles. Quer conhecer os dois anteriores? Segue os links:
1º encontro: O ínício de uma fábula
2º encontro: O segundo ato




Aspas do Autor: Esta é a terceira história, baseada na fábula de Pierrot e Colombina. Praticamente a tornei uma série. Um conto que escrevo apenas em época de carnaval. Ela é peculiar, porque é uma das poucas histórias em que primo pelos detalhes de maneira melodiosa, onde abuso de poesia e o concluo sempre com uma tristeza incomum e desmedida, pouco encontrada nos meus outros contos... Os links para os outros dois textos, deixei acima, para quem sentir vontade de ler. Abraços!

Ondas internas

16 de fevereiro de 2013




A alma é repleta de ondas. E todo dia nos metamorfoseamos. A gente muda numa muda percepção. Tão insípida que quase não dá pra absorver com total ciência. Porque é uma viagem que nos faz navegar nos mares internos da alma, querendo aportar em novos continentes do profundo. Porque é um desbravar silencioso que nos incita a descobrir novos territórios para colonizar. Terras férteis, abundantes em sua naturalidade tão ansiosas de serem decifradas. Encantos que se revestem de respostas, das quais tanto pelejamos em encontrar.

Nem sempre faz sentido, mas as indagações, as aflições que nos movem pelas margens do nosso ser são propulsões naturais de como quem nasce esquecido de sua origem. A alternância e multiplicidade das nuances, dos tons em que o ambiente interno se colore nos erradica da zona saudável, do paraíso plural das possibilidades. O amálgama do ser nos inquieta e nos cutuca com vara curta.

Navegamos sob o efeito desta brisa que nos envolve num demasiado querer. Querer, numa intermitente caça ao tesouro. Desejar, numa incessante investigação, pela chave a destrancar nossas áreas mais cerradas e de difícil acesso. Numa forma talvez de encontrar o seio, o selo que nos identifique ou a palavra que responda por tudo o que cerca a ilha da nossa ínfima alma. Peregrinação interna, para reacender os olhos, para incidir a chama da verdadeira compreensão com o coração. A gente quer. Entender. Ser.

Os suspiros reacendem o ímpeto, cerceiam o volume aplumado dos temores que desfilam reféns em nossa interna prisão. A agitação calibra nossas vontades, enrijecem as asas e nos põe a voar. E assim depositamo-nos por inteiro na imensidão do mar interno, para sermos açoitado pela maresia que se oscila nos becos do coração, feito bandeira que tremula com o roçar ébrio e morno do vento. Pousamos firmes nas paisagens que figuram belas e ternas pelo horizonte interno.

Enraizamos na essência da fé, na energia pulsante que se chama esperança. Querer é a chama que impulsiona, o ingrediente que licita os segredos trancafiados no mais íntimo de nós. Arregaçamos as fibras dos olhos e precipitamos com força vigorosa no horizonte almejado. Arrematamos o encanto com a ponta do coração e ficamos entregues à mão sábia do destino, sobre a segura embarcação da persistência.

Que neste velejar, estejamos ao alcance do sorriso, dos sonhos mais belos que tanto desenhamos. Que a tenacidade nos dê as cores para pintar a realidade do que se esboça no peito. Que a overdose de querer seja sempre benéfica. E saibamos nos encontrar e decifrar os códigos que perambulam pelas rotas do âmago. E que finalmente compreendamos que amor e querer são verbos necessários um ao outro. Que as viagens internas aprimorem a nossa habilidade de nos achar. Ajustar a vela é vital.



Aspas do Autor: Os segredos da alma se precipitam no íntimo. O espírito sobrevive sob caudalosas ondas, pelas quais temos necessidade de navegar, caso queiramos crescer. É enfrentando as ondas e a maresia interna que, enfim, conheceremos mais o nosso ser. E assim, fará sentido ser.

Equilíbrio distante

2 de fevereiro de 2013




“Enquanto houver você do outro lado
Aqui do outro eu consigo me orientar” 
O anjo mais velho – O Teatro Mágico


Algo bonito se instalou em mim. E veio de longe. É esta força que me atrai e me dá vida. Caminho para encontrar. O que busco é o que me equilibra; o que alicerça minha alma e constrói trilhas de solo firme sob os pés. O encanto fez morada em mim e trouxe o rompante de sua magia ao coração. O que anseio é este desejo belo causado por esta força misteriosa, que divaga sorrateiro pela matriz da mente; as minúcias belas que brotam desta presença e que pincelam meu ser com tons dourados. A poesia fez a ponte e me enlaçou com os fios de ternura que o mundo oferece. Criei um elo com o amor. Só respiro porque há algo no além à espera, pronto pra me abraçar.

Meu olhar repousa distante. Minha alma adormece nos braços bondosos do horizonte. O amor se encontra ali bem longe, propagado pelo firmamento. O sentimento está em mim, como também se multiplica pelos detalhes macro e microscópicos da vida. É ele que se espreita pelo meu mundo. Sou eu que me espreito pela sua essência dissipada no ar. Vive ao além, lá onde terra se choca com o céu. O amor se esconde naquele limiar, por trás daquele acortinado que só os olhos do coração são capazes de enxergar. Por isso caminho e vou pra longe, no compasso do meu desejo, seguindo as pistas que a sensibilidade deixa, propositalmente, pelo chão.

Há algo que denota pelos cantos dos olhos. É o elo que me conecta com os dotes primorosos do amor que me aguarda, do amor que me apara e me protege. O que busco se vocifera furtivo pelas janelas da alma. Surge como arco-íris a se desenhar no céu. O mistério se adentra e me invade vestido com seu escuro véu. Joias tilintam no solo fértil do meu coração e minam suas belezas pelos recantos mais nobres da minha residência interior. Sei que o que me sustenta vem de longe. É pra longe que a cada dia lanço meu corpo, morada desta alma inquieta que tanto ambiciona o carinho singular do inevitável encontro.

Não sei bem o que procuro, mas sei que é vestido com a mais requintada beleza. A vida apenas me manipula, como se eu fosse um fantoche sendo carregado pelos fios do vento, pelas linhas curvas das estradas. Porque me jogo no ar, feito pássaro que deita nas colchas das brisas e voa liberto na busca pelo paraíso, para além da linha do horizonte. E pouso na montanha mais alta para tentar ver. O que quero perpassa o meu acalentado rosto, tocado pelas fibras delicadas do silêncio que reside na altura e na distância. A paz roça minha alma com toques sutis. O coração se alimenta desta energia que desliza fiel no meu sangue. O amor me dá vida. O que está além, escondido, me aninha.

Medito sob o efeito da sintonia branda desta melodia que vem de longe, firme sobre a corda bamba e longínqua pela qual meus pés nus se equilibram. Mas onde está? Quero muito encontrar. Quanto mais percorro, mais longe me sinto. O mundo se torna maior quanto mais o conheço. Quanto mais viajo, mais a fronteira se expande. Ando e canso de andar. Ainda assim não vejo, não o sinto perto. Mas está lá, vivo e perdido, além do firmamento. E enquanto houver do outro lado o amor, firme e com fé seguirei. Porque é ele que me mantém.



Aspas do Autor: O horizonte me seduz. O que tanto anseio vive lá. É por isso que percorro e busco. O amor se espreita no além. Vou conseguir encontrá-lo. No mais, estou de volta das minhas férias. E como é ano novo, consequentemente teremos encantos novos. Nada melhor do que começar renovado e com nova decoração. Tanto aqui quanto na alma. Acreditem, 2013 tem tudo para ser um belíssimo ano. Abraços!