O segundo ato

18 de fevereiro de 2012




“O Pierrot apaixonado chora pelo amor da Colombina...”
(Pierrot – Los Hermanos)


As luzes cintilavam pelas ruas, e tudo envolto era puro estribilho refletido por uma lua cheia, esbanjando poesia reluzente em encanto. A noite brindava o fim do carnaval. Perto dessa beleza que a vida proporcionava, as decorações das festividades pareciam alegorias pueris. A vida retumbava sob as veias do vento uma lúdica sensação de amor, de sentimento sendo esparramado ao bel sabor de um oxigênio puro, de real sabor e brilho inigualável. Era nesta imensidão em que ele se deleitava e disseminava sua alma tão abundante em doçura, em um amor valioso e de singela ingenuidade. As fagulhas de luzes daquele céu estrelado refletiam-se no rosto puro e branco dele e a lágrima doce cristalizada em seu rosto cintilava em tons dourados. Vestido com o seu habitual terno de duas cores – um lado preto e outro branco – ele corria, pulava e rodopiava pelas ruas vazias, exalando o aroma sutil da sua alma que embora triste, era demasiada transparente, sensível e bonita, fazendo com a sua presença perfumasse o ambiente com uma sinfonia delicada e romântica.

Em meio a passadas sutis, mas firmes e impulsionadas pela força motriz dos céus, seus olhos de imaculado brilho, que piscavam em nuances idílicas dignas de um arco-íris, avistaram um imenso grupo de atores de rua atuando para algumas poucas pessoas. Eram as típicas apresentações de fim de carnaval daquele bairro, onde os artistas premiavam as pessoas com encenações lúdicas, repletas de comédia e sentimento. Ele ficou a olhar de soslaio, esgueirado por trás de um poste adornado com fitas coloridas, o espetáculo que ali acontecia. Ao término, as pessoas vibraram com o fim da peça entre aplausos e comoções. Um dos atores disse que a próxima peça envolvia um musical onde aconteceria um reencontro entre Pierrot e a sua amada Colombina, mas que essa peça necessitava de um voluntário para interpretar o apaixonado. Neste momento a lua ressurgiu por de trás das nuvens e iluminou as ruas com matizes amorosas e doces, clareando o lugar onde ele escondia. Foi quando alguém o viu, e logo murmurou para que chamassem o moço atrás do poste.

A lágrima em seu rosto vibrou em uma dor aguda. Estrelas deixaram de brilhar, o céu enegreceu. Mesmo assim, estranhamente aceitou o convite, e seus pés o levaram até o púlpito em que os atores faziam apresentações, ao mesmo tempo em que caçava com os olhos quem seria a Colombina. Enquanto ia, um perfume de sândalo se envolveu pelo ambiente, fulgores de anil cantarolavam pelos olhos dele e todos ficaram extasiados com a presença daquele estranho Pierrot de semblante autêntico e melancólico. Soube que não haveria fala, era só preciso dançar entre vários mascarados e improvisar um reencontro com a Colombina, que no momento certo, saberia quem seria. E aquilo fazia parte daquela peculiar apresentação. O triste moço sentiu um imenso formigamento no peito.

Ao sinal do responsável, a cena se iniciou, sob uma valsa incrivelmente melodiosa. Enquanto um senhor narrava ao público, os demais mascarados se propuseram a dançar, enquanto ele, envolvido pela música e pela cena tão poética e de infinda beleza, simplesmente agiu como sempre agia. E naturalmente foi espalhando seu encanto romântico por entre os dançantes, dando passos ingênuos com trejeitos de menino. Ao dançar, e revelar acalanto por meio dos seus discretos gestos, mostrou uma sedução arguciosa, de terna delicadeza, impressionando a todos que ali o assistiam. Sua presença fluía e evidenciava autenticidade, uma esplêndida presença que exultava toda a sua formosura infinda em inocência. A naturalidade no seu jeito enchia a praça com uma luminosidade empolgante.

Tudo ao redor parecia magistral. E se tornou maior, quando, em meio a várias pessoas, os dois se aproximaram. Ao desviar de um mascarado, ele então a viu. Nem precisou ouvir o narrador indicar. E mesmo com máscaras, eles puderam reconhecer os olhos um do outro. E cometas tremeluziram no céu, exultando uma força tremenda, capaz de tremer a terra. Fagulhas de estrelas se chocaram e universos repletos de maravilha nasceram. A vida era nada perto da essência que se permeava naquela troca de olhares. Tudo era mínimo diante da magnitude que aquele reencontro exercia no firmamento de todas as constelações.

A lágrima cristalizada em seu belo rosto branco, enfim, se tornou úmida em plena emoção. A moça, denotando seu sincero anseio, deixou à mostra diamantes, em forma de lágrimas, caírem do rosto. Não se viam desde aquele inusitado encontro, há um ano, pelas ruas do centro histórico. Os dois, mudos ante aquela surpresa, exibiam uma indisfarçada sintonia, uma afeição mágica que ia além de qualquer compreensão. Os momentos vividos há um ano, no fim do carnaval anterior, voltaram à suas mentes e seus semblantes ficaram lívidos de comoção. Num súbito, ela se afastou e se misturou aos dançantes. Ele a seguiu caminhando. E ficaram assim, fugindo um do outro. Por vezes se entreolhavam e flertavam. E a cena se permeava com um romantismo verdadeiro, delineando uma naturalidade que figurava o ambiente com uma nobreza de indefinível dimensão. Enquanto todos pensavam que ambos atuavam, os dois realmente viviam um reencontro. A plateia ficou pasma com a atmosfera de ternura no ar.

E em meio à tensão doce criada, num súbito, os dois pararam novamente um na frente do outro. Seus corações palpitavam céleres e ofegavam em calor, fortes respirações. Do paletó, ele tirou a rosa e a deu-lhe, de maneira emocionada. Ambos tiraram a máscara e então se viram plenamente. E a doçura renasceu, o brilho reavivou, a vida ressurgiu nova diante dos dois. E ante a surpresa de todos, selaram os lábios num beijo intensamente apaixonado. A melodia parou e todos ficaram a olhar, atônitos, as almas dos dois flamejarem em paixão. O silêncio pareceu apoderar, não apenas na rua, mas no mundo inteiro. Só se ouvia o universo brindar o estalar daquele beijo, a união daquele amor. Planetas se alinharam e os anjos reverenciaram os dois apaixonados. A magia entrelaçava novamente dois corações que se entendiam em diálogos mudos, em que os sentimentos se intercalavam com tamanha afinidade. Um retumbo de alegria se disseminou ao redor. Era o encanto puro materializado naquele enlace.

Após uns minutos, eles se separaram lentamente. Seus olhos eram cúmplices e diziam sem falar. Amavam-se. Explosões de encanto adornavam seus corações com intensa felicidade. E todos da rua, até os demais atores, magnetizados, aplaudiram o que imaginavam ser apenas uma atuação. Porém os dois ali viveram algo inteiramente mágico e verdadeiro. Ela se exultava em uma alegria radiante. O moço enfim pôde novamente sentir a delícia de sorrir. Ficaram se fitando por um bom tempo, até que ele notou que estava prestes a amanhecer. Era o momento de ir embora. Ela percebeu o que ele dizia naqueles olhos de pura ansiedade. A moça, de beleza infindável, com as avermelhadas maçãs do seu suntuoso rosto, silenciou uma negativa. Novamente não poderia ir com ele. Os olhos do moço ficaram em trevas. O sorriso esvaiu. Então correu pra longe, pra bem longe da vista de todos. Ninguém entendeu o que houve.

A moça desatou a chorar e também correu, mas na direção contrária, levando consigo a rosa. Seu sorriso e seus olhos denunciavam: ela o amava. Mas contrariando seu coração, correu a fim de ninguém vê-la desabar em lágrimas. Desvencilhou-se da rosa, que ao chocar-se com o vento despetalou-se e espalhou pela rua. Ali de perto, esgueirado por trás de uma casa, o moço a via ir. Aproximou-se e tristemente catou sua rosa despetalada. Pareceu que catava os pedaços do seu terno e sincero coração. Agachado, sob uma superfície concreta de dor, ele a viu correr distante e ser abraçada por um moço vestido com uma roupa colorida com retalhos losangos. A moça pareceu sentir, pois virou seu rosto. Ao vê-lo, uma lágrima de diamante rolou pelo seu olho e na rua tilintou. E foi-se com o outro. Do moço, uma nova lágrima doce do seu olho esquerdo brotou e para sempre cristalizou. E então, abraçado num mundo de amargura, perdeu-se entre os becos daquela cidade.

O sol despontou. O dia de cinzas nasceu em um clima pesado de tristeza. Ninguém mais viu os dois. Houve sim outras peças, mas o melhor ato foi protagonizado pelos dois. Haverá outro ato, outro reencontro? Talvez, quem sabe, em outros carnavais... Porque este, no momento, teve seu fim, seu triste fim...

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Quer conhecer o primeiro ato, o primeiro encontro deles? Neste link: O Início de uma fábula.





Aspas do Autor: Novamente delineando um conto de pura fantasia, porém tentando manter um teor mais real, como o fiz na primeira história dos dois, para dar uma atmosfera autêntica, sem esquecer do teor romântico e triste, tão envolto em alguns amores de verdade. No mais, acho que há muitos Pierrots por aí, que vivem a chorar pelas ruas da vida pelo amor da sua amada...

Até o fim da viagem

11 de fevereiro de 2012




Durante a vida nos tornamos especiais para pessoas especiais. Mesmo quando partimos, um pouco de nós sempre fica. E nossa presença se eterniza...


Durante os dias, em toda nossa vida, caminhamos sem saber o que virá pela frente. Podemos imaginar e planejar, mas jamais seremos capazes de determinar o dia de amanhã. Vivemos ante um mistério, um oculto presente em cada instante, uma ilusão ainda não materializada. Aí descobrimos que precisamos então aproveitar intensamente cada momento, cada minuto e cada dia. Durante o crescimento o erro é inevitável. Os acertos surgem após amadurecimento e muito soco levado. O sofrimento é uma constante, o choro, a dor, a lágrima contida, o sorriso desprendido e o abraço apertado. Aos poucos descobrimos as brincadeiras, a tristeza, a alegria, a amizade, a cumplicidade, a falsidade. Durante o caminho, esbarramos em pedras, mas muitas vezes em joias; pulamos obstáculos e desbravamos sonhos. Da vida então a gente ganha olhares, beijos, apertos de mão, palavras de carinho, um gesto de oi, um eu te amo.

Nessa viagem criamos expectativas, ansiamos desejos, sonhos, ilusões, adquirimos amizades, perdemos amizades, colecionamos amores, decepções, conquistas ou não colecionamos nada. A gente projeta os pés no vazio, sem saber onde pisar, viramos a página sem saber se é a última, nos deitamos para dormir sem imaginar como será o dia seguinte. Então continuamos, estudamos, batalhamos, lutamos por nossos ideais, colocamos em prática ideias, concretizamos sonhos e metas. Do nosso lado contamos com o apoio de familiares, de amigos, pessoas especiais que querem nosso bem, que se importam e emocionam e se felicitam juntamente conosco. A cada dia refletimos, amadurecemos mais e percebemos os reais valores da vida. Com muita alegria, a vida nos presenteia com lições que beneficiam nosso crescimento. Observamos que a verdadeira felicidade está muito perto do que nós imaginamos: dentro de nós.

A cada passo dado, a cada degrau vencido, notamos que ao nosso redor existem coisas boas, bonitas, lindas, que nos dão forças pra viver. Felizmente a gente segue construindo nossa vida da forma como queremos, nos tornando o que queremos ser, vivendo como achamos que deve ser. Destas experiências os olhos abrem mais, contemplamos a beleza da vida, da intensidade do sol, do mistério da noite. Entendemos então que a vida precisa ser vivida. É então, quando finalmente chega o momento em que tudo vem à nossa mente, de tudo que vivemos, o que passamos, os aprendizados adquiridos nos surgem como um reflexo do que escolhemos. Notamos que ao redor sempre há muitos e infinitos motivos para ser feliz. Notamos que a cada dia a gente se torna especial, importante, querido e amado por alguém.

Definitivamente a gente caminha de cabeça erguida, tendo a certeza de que tudo que vivemos e de todos os momentos felizes que passamos, ao lado de joias, estrelas e flores que são nossa família e nossos amigos, jamais serão esquecidos e que ficarão eternizados no nosso e no coração de todos. Que por sermos especiais, seremos sempre lembrados, estaremos firmados nos corações de pessoas amadas, mesmo depois que o último sopro chegar, que a viagem terminar...

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Texto originalmente escrito em 20 de julho de 2007, em homenagem às vítimas do vôo 3054 da TAM.





Aspas do Autor: Este texto foi escrito há quase cinco anos no meu antigo blog, e estive a relê-lo por estes dias. Me emocionei bastante, relembrando o triste episódio do acidente da TAM. Não sei se alguém lembra. Apesar do tom triste, decidi novamente compartilhar este texto que fiz (com uma leve revisão), justamente pela linda mensagem contida nele e por particularmente achar um dos textos mais bonitos que escrevi até hoje... No mais, as coisas andam bem. As férias me desacostumaram, mas estou voltando ao ritmo de pouco em pouco. Meu carinho à todos.

Sou humano

4 de fevereiro de 2012




Sou pessoa de trato fácil, que evidencia no jeito sincero de ser a película mais verdadeira da alma. Sou pele cristalina que expõe bem a nuance da alma, os tons que colorem a tela do meu mais bonito quadro. Não sou de complicar, nem de tornar a vida e suas difíceis escolhas em obstáculos intransponíveis. Sou de medos, mas sou de coragem e de riscos. Sou de enfrentar escolhas e corredores nebulosos. Em meio a incertezas dou passos no escuro. E mesmo com receio, parto para encontrar a luz, os sinais que correspondem à felicidade. Na busca pelo sorriso, faço tudo o que está ao meu alcance. E só faço o que por inteiro meu coração quer. 

Sou pessoa que por vezes para, mas que constantemente segue o curso e vive os percalços, dá a cara à tapa na busca por encontros sinceros, amores completos e alegrias abundantes. Não sou de fugir, nem de me esconder, nem de me silenciar. Não fui feito para responder à vida com indiferença, nem esnobá-la. Sou de abraça-la, até mesmo com o corpo doendo, com a chuva a cair pelos meus olhos castanhos. Sou demais espontâneo e não tenho medo de errar. Faço tudo com uma sinceridade extrema. Não sei pôr malícia nos meus atos. Faço tudo com a melhor das intenções, dentro da ansiedade de querer o melhor, de oferecer o mais precioso. E só faço quando me dão margem. E diante das dores, luto desenfreadamente para não me deixar reprimir pelas quedas que eventualmente ocorre. 

Sou prático e por vezes objetivo. Não sou de meias verdades nem de contornar irrelevâncias para chegar até o ponto crítico. Meu coração não gosta de rodeios. O que sou, sou, o que quero, de fato quero. Não hesito em escolher, em sonhar, nem em denotar meus desejos e expor de verdade as luzes que fulguram o meu mais íntimo. Nem mudo o que um dia falei. Minhas palavras são lei, são reflexos plenos dos meus atos. O que digo está lacrado, sem volta. Sou humano e sofro. Sou meio aço, meio flor. Sou homem sensível que não sente vergonha em chorar, em demonstrar que tem limites e fraquezas. Mas sou homem perseverante que não desiste na primeira queda. 

Sou pessoa que não entende bem certos aspectos da vida, nem do comportamento das pessoas. Mas sou excepcionalmente aberto a tudo que vai além da minha compreensão. Não julgo o que é diferente, nem o que é indiferente ou semelhante a mim. Muito menos julgo eu mesmo. Vejo a vida com olhos condescendentes. Sou complacente e sorrio encanto mesmo com a alma marejando dor. Sou tranquilo e sou de ações próprias. Não sou influenciável, nem responder a atos hostis ou ofensas contra mim. Sou quem sou justamente por agir conforme meus valores e princípios me orientam. Acredito que isto é ser autêntico. Ajo conforme desejo que ajam comigo. Mesmo que nem sempre as pessoas ajam conforme espero... 

Posso ser de apanhar, de ser julgado, ser incompreendido e desrespeitado, mas não sou de tapas, nem de bater, muito menos de ofender ou desrespeitar. Se esperarem grito, há de receberem abraço; se esperarem ofensa, há de terem amor; se esperarem julgamento, só terão respeito. Não sou de apontar, mesmo que às vezes exista o que mirar. Sou humano tranquilo. Sou encanto, mas nem sempre. Sou de quebrar, mas também de me restaurar. Sou pura imperfeição, mas também puro amor. Sou dor, mas sou sabor de poesia a expirar pelos poros do corpo. Sou calor expelido de sorrisos sinceros, de olhares transparentes; sou constante amor doado por um coração inteiro, demasiado sincero, espontâneo... 

Sou humano, carente de sentimentos reais, de entregas verdadeiras e olhares complacentes, compreensíveis. Mas sou abundante de intenções amorosas, de sentires completos, de francos quereres, de abraços intensos. Sou apenas um frágil humano querendo franqueza, mais abraço, mais cumplicidade, respeito e consideração. Sou apenas alguém que quer um mínimo de atenção, um afeto verdadeiro, uma fala sincera, um sinal conclusivo. Não quero distraídas emoções, nem sensações distintas. Só quero a troca de um olhar, a palavra franca de um coração, o gesto de enlace ou de soltura. Quero ouvir a vida pulsar. Saber se ainda dá para viver e continuar. Mereço. Porque de tudo o que me fere, o que mais me mata é a indiferença... 

Perdoe-me vida, se hoje, recluso na solidão, as lágrimas descolorem um pouco o arco-íris da minha alma. Perdoe-me se hoje te peço mais compreensão. Perdoe-me se parece clichê dizer isso, mas é que nasci humano...





Aspas do Autor: Hoje dói. Mas a vida segue... E espero que por aqui ela continue colorida... Até um dia.